Categoria Infância e Atualidade

porReinaldo Santos

Crianças transtornadas ou mimadas?

CONTARDO CALLIGARIS

Crianças transtornadas ou mimadas?

Procurar as razões do déficit de atenção leva tempo, mas prescrever uma pílula leva um minuto

Nas áreas urbanas do mundo ocidental, entre 8 e 10% das crianças do primeiro ciclo são diagnosticadas com TDA/H (Transtorno do Déficit de Atenção –com ou sem Hiperatividade). O que significa, grosso modo, que elas não conseguem focar, são constantemente distraídas e, quando hiperativas, não param de se movimentar.

Sabe aquelas crianças que, na hora de ler ou estudar, são atormentadas por coceiras irresistíveis, rolam de um lado para o outro da cama, batucam, acham que a camiseta está apertada ou que é urgente abrir a janela (ou fechá-la)? Pois é, essas mesmo.

Elas atrapalham a classe inteira, exasperando pais e professores. E, de fato, o transtorno é, antes de mais nada, uma queixa dos adultos, os quais, às vezes, pedem que médicos, psicólogos e pedagogos façam “alguma coisa” –pelo amor de Deus.

Mas não só os adultos pagam a conta: as crianças com déficit de atenção e hiperativas não aprendem a metade do que aprenderiam se ficassem sentadas e focadas. Várias experiências mostram que só é possível combinar pensamento (ou aprendizado) com agitação física à condição de ser um pensador (ou um aluno) medíocre.

Alguns dizem que tudo isso acontece porque não sabemos mais disciplinar nossas crianças. Não queremos correr o risco de contrariá-las e de perder seu amor e, com isso, somos absurdamente permissivos; logo, insatisfeitos com nossa própria permissividade, tentamos corrigi-la com erupções de severidade descabida. Essa alternância piora a tensão e a agitação física e mental das crianças.

Enfim, diante do TDA/H, três estratégias possíveis:

1) sugerir mudanças no comportamento das crianças e dos adultos ao redor delas (há pequenos gestos que fazem uma diferença: organizar o trabalho escolar, acalmar e ordenar o ambiente familiar, desligar a TV durante as refeições…);

2) entender os conflitos internos que talvez se expressem na falta de atenção e na hiperatividade da criança e tentar intervir;

3) medicar (descobriu-se que os melhores remédios não eram calmantes, mas estimulantes como Ritalina ou Dexedrina).

No começo dos anos 1990, nos EUA, uma grande (e apressada) pesquisa chegou à conclusão de que medicar era o caminho mais eficiente –certamente, era o mais barato.

Hoje, vários autores daquela pesquisa duvidam de suas próprias conclusões. Lamentam, por exemplo, que a gente, apostando nos remédios, tenha deixado de se ocupar do resto, que talvez fosse mais importante a longo prazo (“New York Times” de 30/12/2013).

Mas o artigo do “NYT” não é uma novidade: numa matéria da “Der Spiegel” em 2012 (http://migre.me/hqR7i), Leon Eisenberg, um papa da psiquiatria norte-americana, encorajava os psiquiatras a voltar a se interessar pelas “razões psicossociais” que levariam a um “problema de comportamento”, como o TDA/H. Infelizmente, ele comentava, o interesse por essas questões leva tempo, enquanto prescrever uma pílula é coisa de um minuto.

Nota aparte: para muitas crianças diagnosticadas com TDA/H, a falta de atenção depende da atividade na qual elas se engajam. Quase nunca falta a concentração exigida por um videogame, como não faltam a atenção esperada do goleiro ao longo de uma partida ou a paciência do surfista que aguarda uma onda, no fundo. Ou seja, o déficit de atenção não é uma inaptidão cerebral.

Mas a pesquisa dos anos 1990, abençoando o uso sistemático da medicação, atrasou o trabalho de todos, terapeutas comportamentais, psicanalistas etc.

Um artigo de 2007 (http://migre.me/hqROf) retoma uma tese antiga, que insiste desde os anos 1990, e que fala mais dos efeitos do TDA/H do que de sua origem: o TDA/H lutaria contra o sentimento de rejeição pelos pares, porque pensar é uma atividade solitária (com riscos de discórdia), enquanto é rápido e fácil se enturmar ao redor de ações e movimentações físicas.

Enfim, resta um círculo vicioso clássico. Tal criança morre de tédio assim que abre um livro ou entra num museu; agora, sem cultura para enriquecer a experiência, é a vida dela inteira que se tornará mortalmente chata –inclusive a agitação que deveria garantir a distração.

Aviso: vou tirar umas férias –jeito de falar: vai ser para focar melhor, não para me distrair (sempre acho bizarro querer se distrair –de quê?). A coluna volta no dia 6 de fevereiro. Bom começo de ano a todos.

COLUNISTAS DA SEMANA: sexta: Michel Laub, sábado: Álvaro Pereira Júnior, domingo:Ferreira Gullar, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutin

porReinaldo Santos

Pais e filhos

CONTARDO CALLIGARIS

‘Longe da Árvore’

Será que saberíamos produzir vidas com uma esperança diferente da de reproduzir a nós mesmos?

Li o novo livro de Andrew Solomon quando foi publicado nos EUA, no fim de 2012. Para explicar por que ele é, para mim, um dos ensaios mais importantes das últimas décadas, preferi esperar a tradução em português, “Longe da Árvore “” Pais, Filhos e a Busca da Identidade” (Companhia das Letras).

O título se refere ao ditado segundo o qual os frutos nunca caem longe da árvore que os produziu –ou seja, “tais pais, tais filhos”. Só que, às vezes, nossos filhos nos parecem diferentes de nós: frutos caídos longe da árvore. De qualquer forma, a árvore quase sempre acha que seus frutos caíram mais longe do que ela gostaria. E, na nossa cultura, amar os filhos que são diferentes de nós não é nada óbvio.

A obra de Solomon é um extraordinário elogio da diversidade e da possibilidade de amar e respeitar a diferença, mesmo e sobretudo nos nossos filhos. Por acaso, li o livro de Solomon logo depois das tocantes e bonitas memórias de Diogo Mainardi (“A Queda”, Record) sobre o amor por seu primogênito, Tito, diferente por ser portador de paralisia cerebral.

A leitura de “Longe da Árvore” ajudará qualquer pai a não transformar suas expectativas em condições de seu amor. Isso bastaria para que a obra de Solomon fosse imprescindível –para pais e para filhos. Mas há mais.

Retomo uma distinção que Solomon usa. Chamemos de identidades verticais as que são impostas ou transmitidas de geração em geração: elas são consequência da família, da tribo, da nação na qual nascemos e também das expectativas dos pais (quando elas moldarem os filhos). Chamemos de identidades horizontais as que inventamos ou às quais aderimos junto com nossos pares e coetâneos: elas são tentativas de definir quem somos por nossa conta, sem nada dever à árvore da qual caímos.

O paradoxo é o seguinte: a ideia crucial da modernidade é que as identidades verticais não constituem mais nosso destino (por exemplo, o fato de nascer nobre ou camponês não decide o lugar que o indivíduo ocupará na sociedade).

Os filhos, portanto, conhecem uma liberdade sem precedentes (viajam, mudam de país, de status, de profissão etc.), atrás do sonho moderno de “se realizarem” –e não do sonho antigo de repetirem seus antepassados. Mas acontece que esse sonho de “se realizarem” é também o dos pais, os quais, como qualquer um, só “aconteceram” pela metade (quando muito). Consequência e conflito: os filhos deveriam correr livres atrás de seus próprios sonhos, enquanto os pais esperam e pedem que os filhos vivam para contrabalançar as frustrações da vida de seus genitores.

Será que um dia seremos capazes de um amor não narcisista pelos nossos filhos? Será que seremos capazes de querer produzir vidas por uma razão diferente da de reproduzir a nós mesmos?

Se isso acontecer um dia, será possível dizer que “Longe da Árvore” foi o primeiro indicador de uma mudança que transformou nossa cultura para sempre.

Alguns poderiam se assustar diante do tamanho da obra de Solomon, que é monumental (mais de 800 páginas). Reassegurem-se: a leitura é fascinante.

O livro é construído assim: há uma introdução, “Filho”, imperdível, e uma conclusão, “Pai” (de filho para pai é o caminho que o próprio Solomon percorreu na sua vida).

No meio, há dez capítulos (que não precisam ser lidos na ordem) sobre as “diferenças” de filhos que caíram longe da árvore e como os pais lidaram com elas (surdos, anões, síndrome de Down, autismo, esquizofrenia, deficiência, [crianças-]prodígios, [filhos de] estupro, crime, transgêneros). A essa lista é necessário acrescentar gay e disléxico, que são os traços que fizeram de Solomon um diferente.

Das centenas de entrevistas nas quais ele se baseia, Solomon sai com um certo otimismo sobre a possibilidade de os pais aprenderem a amar filhos diferentes deles.

Entendo seu otimismo assim: as diferenças extremas (como as que ele contempla) derrotam o narcisismo dos pais de antemão (esses filhos nunca serão uma continuação trivial de vocês) e portanto levam à possibilidade de amar os filhos como entes separados de nós.

No dia a dia corriqueiro da relação pai-filho, o narcisismo dos pais e dos adultos produz uma falsa e incurável infantolatria: parecemos adorar as crianças, mas mal as enxergamos –apenas amamos nelas a esperança de que elas realizem nossos entediantes sonhos frustrados.

porReinaldo Santos

Por que as crianças francesas não têm Deficit de Atenção?‏

http://equilibrando.me/2013/05/16/por-que-as-criancas-francesas-nao-tem-deficit-de-atencao/

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